O Sonho
Acordei. Está um calor enorme, húmido. Sinto a pele peganhenta. Levanto-me e tomo um duche. A seguir, um rápido pequeno almoço e saio para mais um dia de trabalho. Antigamente ia a pé pois morava mais perto. Agora mudei de casa e estou um pouco mais distante do trabalho por isso vou de carro, no meu Fiat500 (meu... bem, na verdade é da minha mãe, mas como ela já não conduz, fiquei com ele de "mão beijada").
É uma maravilha de máquina: com o vento a favor chega aos 100 Km/h! Uma bomba! Chamo-lhe "o meu bóginhas". Económico, fácil de estacionar, nunca me deixou em apuros. É daqueles que abrem a porta para a frente, de modo que, para sair do carro, obriga-nos a uma ginástica muito "sexy" para não mostrar o que não queremos. Um mimo de carro!
Felizmente, temos um vida calma e tranquila. Temos o nosso emprego, ganhamos o suficiente para subsistir sem luxos mas com algum conforto. Não temos casa própria, mas também não precisamos. As rendas são acessíveis.
Temos um moleque/mainato: limpa a casa, lava e passa a roupa. Vive nas dependências da nossa casa, tem um ordenado mensal e alguns alimentos. Faz-me perder a paciência, às vezes, porque desaparece sem dizer nada e nunca sabemos se está ou não. Mas enfim, não se pode ter tudo. Chamava-se Zé, mas tivemos que lhe mudar o nome. Cada vez que se chamava "Zé!" respondia ele e respondia o patrão (meu marido). Então chegámos a um acordo: que outro nome ele tinha para o chamarmos pelo outro nome? Mas ele optou por não utilizar o seu outro nome e preferiu, alegremente, ser chamado de "António". E assim o Zé passou a chamar-se António e agora já não há confusões cá em casa.
Sou a mais nova de 4, 1 rapaz e 3 raparigas. Tive uma infância muito feliz. Vivemos numa serração, nos arredores de uma aldeia ferroviária, quase no meio do mato. A Vila mais próxima ficava a cerca de 25 km, por isso, acabada a escola primária, tivemos que ir estudar, em regime de internato, para um Colégio de freiras que ficava na Vila. Os nossos pais iam visitar-nos ao domingo à tarde.
Era uma alegria! Depois de uma semana "fechadas" no Colégio, sujeitas a uma disciplina bastante rigorosa, podermos desabafar as nossas "mágoas" com os pais e passar com eles algumas horas, era muito bom! No fim do dia os pais iam embora e nós voltávamos à "prisão". Mas tínhamos um bónus: quem tivesse saído com os pais, ficava isenta da obrigatoriedade de jantar! Podia só petiscar... Isso era bom porque normalmente as refeições no Colégio eram muito ruins! Mesmo!
Acabado o Liceu (5 anos fechadas num Colégio de freiras!!), quem quisesse continuar a estudar, teria que ir para a Capital, a 1200Km de distância, e depois para a Europa... foi o caso do meu irmão. Quando acabou o 5º ano do Liceu, teve que ir para a Capital fazer o 7º ano e depois foi para a Europa para frequentar a Universidade pois nem na Capital havia Universidade. Este afastamento da família foi difícil. Tínhamos muitas saudades dele embora ele tivesse o cuidado de escrever todas as semanas, e escrevia sempre umas palavrinhas meigas e divertidas para nós, as manas mais pequenas. A chegada das suas cartas era sempre um momento alto nas nossas vidas.
Eu e as minhas irmãs ficámos pelo Liceu. A mais velha casou-se poucos anos depois de sair do Colégio. A "segunda" arranjou um emprego e por ali ficou. Eu, que acima de tudo detestava estudar, nem queria acreditar que tinha finalmente acabado o Liceu! Quis logo arranhar um emprego! Mas o meu pai conseguiu convencer-me que para arranjar um emprego melhor, eu podia tirar um "curso prático"... e assim, fui estudar durante mais um ano, mas no país vizinho (mais uma vez, por ali não havia escolas práticas).
Fui então melhorar a língua inglesa e aprender dactilografia e estenografia. Foi um curso interessante pois além das disciplinas básicas, havia outras que ajudavam a passar melhor o tempo: tivemos aulas de "self-defense", de maquilhagem, de decoração, de dicção, de postura, de ginástica...
Foi um curso bastante completo e, se eu estivesse mais motivada, teria certamente tirado melhor partido. Mas não, eu queria era "despachar" para começar a trabalhar e nunca mais pegar num livro! Assim, passei pelo curso rapidamente sem grandes altos nem baixos. Finalmente chegou o fim do ano e com ele o fim do curso.
Voltei para casa. Fiz uma festa com os amigos no quintal de casa dos meus pais: gira-discos, fogueira, bolos e petiscos, e assim passámos um belo fim de tarde e princípio de noite. Sim, porque às 9 horas (21h) já todos estavam na cama pois o dia começava cedo, pelas 6 da manhã.
Dias depois arranjei emprego na cidade (a 200Km). Fiquei hospedada em casa de uma senhora conhecida que alugava quartos e assim começou a minha vida de trabalhador.Tinha eu acabado de completar 16 anos.
Dediquei-me de corpo e alma ao emprego. Gostava mesmo do que fazia e os anos passaram normalmente sem nada de relevante.
Até que um dia, inevitavelmente, comecei a namorar, casei e tive um filho.
Neste momento estou casada e o meu bebé tem 3 meses. Os meus pais e as minhas irmãs vivem agora todos na mesma cidade que eu. Ao fim da tarde, ponho o bebé no carrinho e levo-o até casa da minha mãe, que é perto. Às vezes aparecem as minhas irmãs e lanchamos juntas. Outras vezes, deixo o bebé com a minha sogra, que vive connosco, e vou até à "baixa", encontrar-me com as minhas irmãs numa Gelataria. Comemos um "Parfait" (uma taça grande, cheia de gelado e creme e regado com molho de morango ou de chocolate ou de caramelo... nham!), comemos devagar e conversamos um pouco. Depois, cada uma segue a sua vida. Há que fazer o jantar e preparar-nos para o dia seguinte.
O passatempo é ouvir rádio, seja música, sejam as notícias. Há quatro salas de cinema na cidade. Três passam filmes em 1ª mão não sei uma vez por semana ou de 15 em 15 dias, e 1 repete os filmes dos outros em sessão dupla. Em poucos dias já os filmes estão todos vistos (isto para quem pode ir sempre ao cinema).
Esta falta de entretenimento social, faz com que haja muito convívio entre as pessoas. Depois do jantar dá-se um passeio, a pé. Uns dias vamos até à "baixa" ver as montras, outros até à beira-mar, ver as ondas... De vez em quando as pessoas juntam-se em casa de uns e de outros, para uma petiscada, alguma música e muita, muita conversa. Às vezes organizam-se bailes que são muito concorridos. Os conjuntos musicais são um sucesso!
Férias? No primeiro ano que trabalhamos, não há férias para ninguém. Nos anos seguintes, 15 dias por ano. Onde vamos? As outras pessoas não sei, mas eu não vou a lado nenhum. Fico em casa a preguiçar. Vou mais vezes à praia, vou à "baixa" fazer algumas compras, vou lanchar com as manas ou com amigos... só o facto de não ter que cumprir horários já é muito bom! E os 15 dias passam num instante.
É assim a nossa vida. Como disse atrás, sossegada, tranquila e bastante confortável, embora sem luxos e sem grandes actividades, sociais ou outras. A grande vantagem, para mim, é o clima: sempre quente, embora às vezes seja incomodativo, mas durante todo o ano não temos preocupações com casacos ou cobertores... Temos uma boa vida, acho eu.
Perdi o contacto com muitas, senão quase todas, as colegas de escola e do Colégio. Cada um de nós segue a sua vida. Às vezes encontro uma ou outra, mas os afazeres pessoais do momento não nos permitem manter o contacto assíduo. É como calha: se nos vemos, muito bem, fazemos "festa", se não nos vemos, tudo bem na mesma. Sei que mais dia menos dia, as vou encontrar pois vivemos todas por aqui.
Antes do meu filho nascer, o dia de folga era um dia de completo descanso: de manhã praia, um duche e almoço numa esplanada da cidade.
Depois do almoço uma matinée... se o filme for medíocre, sempre dá para fazer uma soneca na frescura do ar condicionado do cinema. À saída levamos com o bafo quente do fim de tarde. Damos um passeio na marginal e sentamo-nos à beira mar para tomar um refresco com uns petiscos: amendoins ou tremoços. Já lá vai o tempo em que serviam como petisco, camarões cozidos ou umas ameijoas. Em alguns locais ainda servem uns pires com dobradinha... Se ainda tivermos fome, mandamos vir qualquer coisa mais substancial e assim ficamos "jantados".
Normalmente, os nossos dias de folga eram assim passados. Agora, com a criança, algumas coisas mudaram mas continuamos a desfrutar de dias de descanso semelhantes, embora agora o bebé nos acompanhe algumas vezes. Quando tal não é conveniente, ele fica com a avó que não se faz de rogada pois adora ficar com ele.
Algo problemático é a questão da saúde: os hospitais por aqui não são propriamente de 1ª categoria. Para doenças comuns, não há problemas, mas se aparece uma doença mais grave, temos que ir ao um dos países vizinhos (entre 300Km a 1500Km) para termos uma assistência médica de confiança. Mas já todos nos habituámos a isso, ninguém sente essa dificuldade pois é uma situação perfeitamente normal e rotineira para todos.
Não haja dúvida que é uma boa vida. Mas será que sabemos dar o devido valor? Nao sei...
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Esta noite tive um sonho muito, muito estranho e de certo modo terrível! E fiquei a pensar nele durante todo o dia pois foi um sonho tão real e tão pormenorizado que me surpreendeu... e ficou-me gravado na memória de uma forma tão nítida que consigo contá-lo todo.
Sonhei que acordámos de manhã com notícias de que houvera uma revolução qualquer. As pessoas andavam compreensivelmente preocupadas. Conversas por aqui e por ali, umas em surdina, outras abertamente, o certo é que ninguém sabia o que o futuro reservava.
Algumas, muitas, optaram por embalar os seus pertences, vender o que pudessem e partir para a Europa. Outras, muitas também, optaram por ficar, apreensivas, sim, mas expectantes, e esperar que tudo passasse e a vida voltasse ao normal. Outras, como nós, hesitaram entre o ficar e o partir. Mas a situação tornou-se insustentável, e resolvemos partir, principalmente porque, com uma criança pequena, se houvesse "confusão" seria mais difícil fugir.
E assim, no meu sonho, embalámos alguns artigos de primeira necessidade, e partimos para a Europa. Ao embarcar no avião, eu lembro-me que chorava desalmadamente, fazendo uma figura triste no meio dos outros passageiros, mas o desgosto de deixar a minha terra para trás era insuportável!
Chegámos à Europa numa manhã muito fria. No aeroporto, e no país inteiro, ninguém nos esperava! Tivemos que ir de taxi para casa de uma tia e pedimos asilo. Essa tia recebeu-nos, alimentou-nos (pois nós nada tínhamos, tudo ficara para trás) e ajudou-nos a procurar emprego e casa.
Os primeiros anos foram muito difíceis, sendo o pior inimigo, o clima frio dos invernos europeus, nunca antes experimentado. A falta de meios económicos também dificultou muito a reintegração. Foram anos muito, muito difíceis.
No meu sonho, sentia na pele não só o frio, como também a relutância, para não dizer o desprezo e repúdio, das pessoas que nos viam como usurpadores dos seus postos de trabalho. Nós não tínhamos culpa que nos tivessem tirado TUDO de um dia para o outro. Nós tínhamos que sobreviver e para isso, tivemos que aceitar todo e qualquer trabalho que nos fosse oferecido.
A agitação do sonho acalmou quando vi que tínhamos atingido um nível de vida estável. Eu tinha já uns 60 anos. Tínhamos mais um filho, uma menina. Ambos cresceram, estudaram e formaram-se sempre perto de nós pois ali havia escolas de todos os tipos perto de casa. Nunca sofremos as dificuldades do afastamento dos filhos, nem em colégios, nem noutras cidades.
A assistência médica era bastante boa. Hospitais, centros de saúde, vacinação, embora com algumas lacunas, tínhamos sempre por perto. De repente o meu marido teve um problema cardíaco grave e foi operado num dos melhores hospitais, perto de casa, e com óptima assistência.
Mas no fundo do coração, mantinha-se sempre uma mágoa constante, meio adormecida, mas sempre presente, da saudade da terra deixada, da vida que ficara perdida para sempre. Neste momento em que recordo esta parte do sonho, parece que sinto a mesma pontada no coração que senti no sonho...
Essa "dor" acalmava quando, por coincidência, reencontrávamos alguém da nossa vida passada! Que alegria, que emoção, quantas recordações partilhávamos! Deste modo nos consolávamos uns aos outros. Através de uns chegámos a outros e assim conseguimos reencontrar amigos e conhecidos que tínhamos perdido. Desejávamos voltar ao passado, mesmo sabendo que isso seria impossível, mas juntos, a dor era menor pois parte da vida passada se juntara de novo e o passado era agora vivido no presente.
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Acordei. Está um calor enorme, húmido. Sinto a pele peganhenta. Levanto-me e tomo um duche. A seguir, um rápido pequeno almoço e saio para mais um dia de trabalho, no meu Fiat500. É a mesma rotina de sempre.
Mas... que estranho sonho tive esta noite. Quanto mais penso nele mais vivas sinto as situações sonhadas. Que vida foi aquela que sonhei? Melhor ou pior do que a que tenho actualmente aqui? No sonho tive momentos difíceis sim, mas... passado o choque dos primeiros anos e as dificuldades da adaptação, tinha depois atingido uma fase muito estável... tinha tido sempre os filhos por perto, ambos formados e saudáveis, os problemas de saúde sempre resolvidos sem grandes dificuldades....
Aqui, neste momento, já começo a pensar para que escola longínqua terei que enviar o meu filho quando ele quiser tirar um curso superior... e, se vou ter outro filho, e for uma menina como no sonho, terei que a internar num colégio de freiras para poder estudar?
E se o meu marido tiver mesmo o problema cardíaco que teve no meu sonho, o que faço?? Levo-o ao país vizinho?? Irei a tempo?? Terei que pedir às minhas irmãs que fiquem com as crianças enquanto o acompanho?? E elas ainda estarão por perto?
E será que vou conseguir manter o contacto com tantas amigas que já não vejo há tanto tempo? Sei que andam por aí, mas não sei nada das suas vidas...
Este sonho deixou-me confusa e muito pensativa. Lá, no sonho, reencontrei tantas amigas da escola! Esses reencontros tornaram a minha vida de sexagenária em vida de "sexalescente". Será que nesta realidade que vivo agora, algum dia virei a reviver a juventude da maneira que a senti no sonho?
Qual das vidas seria preferível, se pudesse escolher?
Não sei... não sei....