1957… num dia qualquer….
Acordei ao som de um “tic-tic-tic” e pensei (se é que com
aquela idade eu pensava!): “devem ser 5 da manhã… o Pai já está a pé….” E
continuei a dormir.
O meu Pai levantava-se sempre às 5 da manhã e preparava o
seu café antes de ir para o trabalho. Ele não mexia o café com a colher às
voltas na chávena como qualquer pessoa faz; não, ele abanicava a colher para os
lados, batendo na chávena e fazendo aquele som inconfundível do
“tic-tic-tic-tic”. Era uma espécie de ‘galo da manhã’, melhor que um campanário
de igreja. Invariavelmente, cerca das 5 da manhã.
Depois ia para o trabalho e voltava às 8h para tomar o
matabicho: dois ovos estrelados com batatas fritas e torradas. Normalmente
deixava sempre um bocado no prato e eu, sempre sorrateira, esgueirava-me para
cima da cadeira e devorava os restos rapidamente, antes que alguém me visse! Deixava
sempre uns restos a “sujar” o prato, para disfarçar… Adorava aquele sabor do
ovo, temperado com sal e pimenta! Nunca soube se a minha Mãe alguma vez
desconfiou que era eu que limpava o prato, nunca lhe perguntei …
Isto porque nós, as crianças, não tomávamos o mesmo
matabicho. O nosso era o leitinho com uma colher de algo solúvel (Ovomaltine!?)
e torradas; nada de ovos nem batatas fritas!
Acordava lá pelas 6h30, 7h, depois era o suplício de ser
penteada pela minha Mãe ou pela minha irmã mais velha. Esticavam-me aqueles
cabelos para fazer o rabo-de-cavalo e era horrível! Eu bem me queixava, mas
elas gozavam comigo “Ai??? É a cantiga do Ai???” ou então a frase italiana “I
capelli della coppa fanno aprir la bocca” (os cabelos da nuca fazem abrir a
boca; em italiano rima)… e sentia-me mal, quase a desmaiar, lembro-me tão bem!
Finalmente RUA! Que bem me sabia aquele ar fresco da manhã;
corria pelos caminhos em direcção a algum ponto de brincadeira. Hoje penso que
haveria falta de oxigenação dentro de casa. A minha Mãe sempre com medo de
tudo, mantinha portas e janelas bem fechadas durante a noite e a falta de ar
fresco provavelmente me provocava aquele mal estar e vontade de ir para a rua.
Naquele sítio onde morávamos, éramos 5 miúdos, com idades
entre os 12 e os 4 anos, eu tinha 6 e o de 4 anos era muitas fezes “fintado”
pelos outros porque não conseguia acompanhar as nossas brincadeiras… coitado do
Filipinho! Andava sempre à nossa procura para brincar…
Naquele dia a brincadeira era, mais uma vez, índios e
cow-boys.
Os nossos cavalos eram os bidons de gasóleo que estavam
deitados numa zona do recinto. Puxávamos dois ou três para os separar dos
demais e montávamos como se fossem cavalos. Em vez de baloiçar para a frente e
para trás, tínhamos que baloiçar para os lados, obviamente… E gritávamos, fingindo
que quase nos apanhávamos uns aos outros, braços no ar, ameaçadores, bramindo
as pistolas e/ou, os arcos e flechas que fazíamos com uns ramos de árvore e uns
cordéis, e “catrapu-catrapum-catrapum” cavalgávamos por aqueles prados
infinitos da nossa imaginação.
(exemplo dos bidons que usávamos
como ‘cavalos’ – os que nós usávamos não estavam amolgados como estes, e
‘rolavam’ na perfeição)
Depois tínhamos que ir comer… apanhávamos umas folhas de
limoeiro ou de outra árvore qualquer, metíamos dentro de água, fazíamos o chá e
bebíamos!!… Intragável certamente, mas para nós, uma delícia!
Durante a refeição verdadeira, em casa, roubávamos
pedacinhos de comida às escondidas dos pais, metíamos num lenço os pedaços de
batata, ervilha, enfim, o que fosse, e levávamos para a “refeição” dos
cow-boys. Corríamos imediatamente a seguir ao almoço para mostrar uns aos
outros, os troféus que conseguíramos “roubar”. Depois comíamos aquela
‘porcaria’ como se fosse um manjar dos deuses.
Às vezes combinávamos ir “aos passarinhos”. Ao acordar,
púnhamos um boneco à janela, em sinal de que tudo estava a correr como
planeado, e o primeiro que ficasse pronto iria bater na janela assinalada,
pronto para a aventura.
Ir “aos passarinhos” implicava ir pelo mato até à
propriedade mais próxima, de um escocês sempre muito mal humorado, que tinha
plantações de milho. As maçarocas eram apanhadas e depositadas num ENORME
recinto rectangular com alguns 2 ou 3 metros de altura e 8 ou 10 metros de
comprimento. Evidentemente estava sempre cheio de pássaros e passarinhos que
iam comer o milho. O dono daquilo não gostava de ninguém, sobretudo de miúdos
(nem do filho dele! Nunca o deixava ir brincar connosco) e ralhava sempre com
quem se aproximasse dos seus terrenos.
Portanto, entre o medo do mato, o medo do escocês, o medo
das cobras e o medo de levarmos uma sova se os nossos pais soubessem que
tínhamos ido para ali, mandávamos duas ou três fisgadas (falhávamos sempre) e
fugíamos de volta para casa, com arranhões nas pernas provocados pelas ervas
altas e secas, com mordidas de insectos, etc! Ou seja, pura perda de tempo, mas
achávamos aquilo o máximo da aventura!
Estas nossas incursões pelo mato eram uma constante. Um dia
decidimos que iríamos até ao rio. Os indígenas diziam que havia um rio “lá em
baixo” mas não sabiam dizer quanto “em baixo” era. E nós lá fomos, depois do
almoço, mato adentro, pelo carreiro que os indígenas usavam para ir para os
seus acampamentos.
Passámos palhotas, acampamentos, mato, mais mato, mais umas
palhotas… de vez em quando perguntávamos onde era o rio. A maior parte das
‘manacages’ (mulheres indígenas) que encontrávamos a trabalhar nas suas
pequenas hortas, nem sabia falar português. Riam-se, acenavam-nos, diziam algo
incompreensível para nós, e continuavam na sua tarefa.
Continuámos. Não íamos desistir! Já tínhamos andado tanto,
decerto não faltaria muito.
Mais mato, algum cansaço, muita expectativa e muita vontade
de ver o rio… e mais mato! Já anoitecia quando ouvimos alguma algazarra nas
nossas costas. Vozes de homem, vozes de mulher, tons de interrogação, tons de
respostas vagas…. Resolvemos parar para “fazer um ponto de situação” (já estava
a ficar bastante escuro e não encontrávamos o rio!!). Já teríamos andado bem
uns 3 km para dentro do mato.
De repente aparece o meu Pai!
Com o sobrolho carregadíssimo, cara de muito poucos amigos,
esbracejava, ralhava “Rio??? Qual rio???? Vocês são malucos??? Sabe-se lá onde
há um rio!!! Já para casa!!! IMEDIATAMENTE!!!”
E foi o que fizemos,
claro!
Ou seja, quando deram pela nossa falta, começaram a
perguntar quem nos teria visto. Uns atrás dos outros, os indígenas lá foram dizendo
por onde nos tinham visto e qual seria a nossa intenção. O meu Pai foi na
camioneta até onde pôde, e depois seguiu a pé à nossa procura.
Chegámos a casa já noite cerrada (lá anoitecia a partir das
18h) e tanto quanto me lembro, a “coisa” acabou ali. Uns ralhetes, mas nada de
mais. Eu fiquei com a alma cheia por aquela aventura incrível, embora
decepcionada por não termos encontrado o rio.
Mais tarde viemos a saber que havia um riacho, sim, mas a
alguns 10 kms dali!!
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