segunda-feira, 28 de abril de 2014

1957… num dia qualquer….



Acordei ao som de um “tic-tic-tic” e pensei (se é que com aquela idade eu pensava!): “devem ser 5 da manhã… o Pai já está a pé….” E continuei a dormir.

O meu Pai levantava-se sempre às 5 da manhã e preparava o seu café antes de ir para o trabalho. Ele não mexia o café com a colher às voltas na chávena como qualquer pessoa faz; não, ele abanicava a colher para os lados, batendo na chávena e fazendo aquele som inconfundível do “tic-tic-tic-tic”. Era uma espécie de ‘galo da manhã’, melhor que um campanário de igreja. Invariavelmente, cerca das 5 da manhã.

Depois ia para o trabalho e voltava às 8h para tomar o matabicho: dois ovos estrelados com batatas fritas e torradas. Normalmente deixava sempre um bocado no prato e eu, sempre sorrateira, esgueirava-me para cima da cadeira e devorava os restos rapidamente, antes que alguém me visse! Deixava sempre uns restos a “sujar” o prato, para disfarçar… Adorava aquele sabor do ovo, temperado com sal e pimenta! Nunca soube se a minha Mãe alguma vez desconfiou que era eu que limpava o prato, nunca lhe perguntei …

Isto porque nós, as crianças, não tomávamos o mesmo matabicho. O nosso era o leitinho com uma colher de algo solúvel (Ovomaltine!?) e torradas; nada de ovos nem batatas fritas!

Acordava lá pelas 6h30, 7h, depois era o suplício de ser penteada pela minha Mãe ou pela minha irmã mais velha. Esticavam-me aqueles cabelos para fazer o rabo-de-cavalo e era horrível! Eu bem me queixava, mas elas gozavam comigo “Ai??? É a cantiga do Ai???” ou então a frase italiana “I capelli della coppa fanno aprir la bocca” (os cabelos da nuca fazem abrir a boca; em italiano rima)… e sentia-me mal, quase a desmaiar, lembro-me tão bem!

Finalmente RUA! Que bem me sabia aquele ar fresco da manhã; corria pelos caminhos em direcção a algum ponto de brincadeira. Hoje penso que haveria falta de oxigenação dentro de casa. A minha Mãe sempre com medo de tudo, mantinha portas e janelas bem fechadas durante a noite e a falta de ar fresco provavelmente me provocava aquele mal estar e vontade de ir para a rua.

Naquele sítio onde morávamos, éramos 5 miúdos, com idades entre os 12 e os 4 anos, eu tinha 6 e o de 4 anos era muitas fezes “fintado” pelos outros porque não conseguia acompanhar as nossas brincadeiras… coitado do Filipinho! Andava sempre à nossa procura para brincar…

Naquele dia a brincadeira era, mais uma vez, índios e cow-boys.
Os nossos cavalos eram os bidons de gasóleo que estavam deitados numa zona do recinto. Puxávamos dois ou três para os separar dos demais e montávamos como se fossem cavalos. Em vez de baloiçar para a frente e para trás, tínhamos que baloiçar para os lados, obviamente… E gritávamos, fingindo que quase nos apanhávamos uns aos outros, braços no ar, ameaçadores, bramindo as pistolas e/ou, os arcos e flechas que fazíamos com uns ramos de árvore e uns cordéis, e “catrapu-catrapum-catrapum” cavalgávamos por aqueles prados infinitos da nossa imaginação.

(exemplo dos bidons que usávamos como ‘cavalos’ – os que nós usávamos não estavam amolgados como estes, e ‘rolavam’ na perfeição)

Depois tínhamos que ir comer… apanhávamos umas folhas de limoeiro ou de outra árvore qualquer, metíamos dentro de água, fazíamos o chá e bebíamos!!… Intragável certamente, mas para nós, uma delícia!

Durante a refeição verdadeira, em casa, roubávamos pedacinhos de comida às escondidas dos pais, metíamos num lenço os pedaços de batata, ervilha, enfim, o que fosse, e levávamos para a “refeição” dos cow-boys. Corríamos imediatamente a seguir ao almoço para mostrar uns aos outros, os troféus que conseguíramos “roubar”. Depois comíamos aquela ‘porcaria’ como se fosse um manjar dos deuses.

Às vezes combinávamos ir “aos passarinhos”. Ao acordar, púnhamos um boneco à janela, em sinal de que tudo estava a correr como planeado, e o primeiro que ficasse pronto iria bater na janela assinalada, pronto para a aventura.

Ir “aos passarinhos” implicava ir pelo mato até à propriedade mais próxima, de um escocês sempre muito mal humorado, que tinha plantações de milho. As maçarocas eram apanhadas e depositadas num ENORME recinto rectangular com alguns 2 ou 3 metros de altura e 8 ou 10 metros de comprimento. Evidentemente estava sempre cheio de pássaros e passarinhos que iam comer o milho. O dono daquilo não gostava de ninguém, sobretudo de miúdos (nem do filho dele! Nunca o deixava ir brincar connosco) e ralhava sempre com quem se aproximasse dos seus terrenos.

Portanto, entre o medo do mato, o medo do escocês, o medo das cobras e o medo de levarmos uma sova se os nossos pais soubessem que tínhamos ido para ali, mandávamos duas ou três fisgadas (falhávamos sempre) e fugíamos de volta para casa, com arranhões nas pernas provocados pelas ervas altas e secas, com mordidas de insectos, etc! Ou seja, pura perda de tempo, mas achávamos aquilo o máximo da aventura!

Estas nossas incursões pelo mato eram uma constante. Um dia decidimos que iríamos até ao rio. Os indígenas diziam que havia um rio “lá em baixo” mas não sabiam dizer quanto “em baixo” era. E nós lá fomos, depois do almoço, mato adentro, pelo carreiro que os indígenas usavam para ir para os seus acampamentos.

Passámos palhotas, acampamentos, mato, mais mato, mais umas palhotas… de vez em quando perguntávamos onde era o rio. A maior parte das ‘manacages’ (mulheres indígenas) que encontrávamos a trabalhar nas suas pequenas hortas, nem sabia falar português. Riam-se, acenavam-nos, diziam algo incompreensível para nós, e continuavam na sua tarefa.

Continuámos. Não íamos desistir! Já tínhamos andado tanto, decerto não faltaria muito.

Mais mato, algum cansaço, muita expectativa e muita vontade de ver o rio… e mais mato! Já anoitecia quando ouvimos alguma algazarra nas nossas costas. Vozes de homem, vozes de mulher, tons de interrogação, tons de respostas vagas…. Resolvemos parar para “fazer um ponto de situação” (já estava a ficar bastante escuro e não encontrávamos o rio!!). Já teríamos andado bem uns 3 km para dentro do mato.

De repente aparece o meu Pai!

Com o sobrolho carregadíssimo, cara de muito poucos amigos, esbracejava, ralhava “Rio??? Qual rio???? Vocês são malucos??? Sabe-se lá onde há um rio!!! Já para casa!!! IMEDIATAMENTE!!!”

E foi o que fizemos, claro!

Ou seja, quando deram pela nossa falta, começaram a perguntar quem nos teria visto. Uns atrás dos outros, os indígenas lá foram dizendo por onde nos tinham visto e qual seria a nossa intenção. O meu Pai foi na camioneta até onde pôde, e depois seguiu a pé à nossa procura.

Chegámos a casa já noite cerrada (lá anoitecia a partir das 18h) e tanto quanto me lembro, a “coisa” acabou ali. Uns ralhetes, mas nada de mais. Eu fiquei com a alma cheia por aquela aventura incrível, embora decepcionada por não termos encontrado o rio.


Mais tarde viemos a saber que havia um riacho, sim, mas a alguns 10 kms dali!!

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