hoje venho partilhar um conto antigo sobre a minha infância em África. Espero que gostem....
Uma Criança em África – Anos 50
Das vicissitudes da vida de meus pais, devo a minha entrada
neste mundo por uma porta fantástica, única e maravilhosa: África! Mais
precisamente, Moçambique “Terra de Boa Gente” (tinha que ser…)
Tenho muitas e lindas memórias da minha feliz infância e
adolescência, desde os primeiros dias numa aldeia do interior, até aos últimos
na cidade costeira, passando pela Vila onde vivi a maior parte da minha
adolescência, e também no País vizinho, onde fui estudar durante 1 ano.
Nasci num hospital já muito antigo, tão antigo que faltavam tábuas no chão, as janelas não tinham protecção de rede (tinham que ficar abertas por causa do calor e os insectos entravam e saiam a seu belo prazer).
Conta a minha mãe que na noite em que nasci, o parto estava difícil e demorado... de repente entrou um morcego pela janela, foram sustos e gritos de tal maneira que eu nasci num instante....
Foto do Hospital onde nasci, à data da sua construção (30 anos antes de eu nascer)
Vivi uma infância muito feliz, numa Serração localizada
perto de uma povoação ferroviária, no meio do mato, a 25km da Vila onde nasci.
Naquele tempo não havia pároco por ali. De modo que, para me
baptizarem, tiveram que me levar a uma Missão, a cerca de 100km de distância.
O meu Pai, a minha Madrinha e eu, com um mês de idade, lá
fomos de automóvel.
Poucos quilómetros percorridos, a minha Madrinha gritou
“Páre, páre, a menina está muito vermelha, não está a respirar!!” … Comecei
cedo a enjoar….
Parado o carro, lentamente eu voltava a respirar e a viagem
prosseguia por mais uns quilómetros, até novo ‘enjoo’… … e assim se fizeram os
100km para lá e outros 100km para cá… mas aí já eu vinha ‘santinha’ portanto
podia morrer porque ia para o Céu… rss
Aquela estrada de terra batida que, quando chovia (e quando
chovia, em África, era chuva de verdade, com bátegas quase do tamanho de uma
uva!), a “pista” tornava-se num lamaçal. Consta que numa determinada viagem à
Cidade (sim, também lá havia uma Cidade, mais 100km para lá da Missão), a chuva
era tanta e a lama de tal modo escorregadia que o Chevrolet começou a andar de
roda sobre si próprio e só muito a custo conseguiram retomar o caminho; mas
alguns quilómetros andados, descobriram que estavam a voltar para trás pois com
as voltas que deu, o carro parara no sentido contrário ao que seguia
inicialmente e com a chuva, ninguém se apercebeu…. Belos tempos!
Exemplo de estrada
Se não chovia, havia pó, como é evidente. E quem conseguir
imaginar uma viagem de automóvel – o Chevrolet 1950 já era um automóvel quase
de luxo! – numa estrada de terra batida, aos solavancos, muita poeira e muito
calor, talvez entenda que cada viagem destas se fazia uma vez por ano, partindo
às 4h da manhã, com a primeira paragem cerca das 5h, para as meninas vomitarem… (eu com 4 anos e a minha irmã com 6) e para
ver o dia nascer e os macaquinhos a fugir do meio da estrada e desaparecer no
mato… Lavávamos então as mãos e a cara com água que se levava sempre para toda
e qualquer eventualidade, e cerca das 6h30 nova paragem para atravessar o rio
em batelão.
O Batelão
Esta operação demorava normalmente 30m a 1h, dependendo do
número de viaturas em fila de espera… ou da margem em que o batelão estava à
chegada da viatura. Este “passeio” era o ponto alto da viagem propriamente dita.
Saíamos do carro e, nós crianças, observávamos os outros passageiros e
respectivas cargas – galinhas, massarocas de milho, cana-de-açúcar, etc., e
prestávamos muita atenção ao funcionamento da máquina, grandes roldanas nas
margens, por onde passavam grossas cordas por sua vez engrenadas no batelão e,
numa cantilena característica, os indígenas puxavam ritmicamente as cordas,
fazendo o batelão atravessar vagarosamente o rio. À chegada à outra margem, cumprimentavam-se as
pessoas que aguardavam a sua vez de passar para o outro lado – havia sempre
alguém conhecido. Gratificavam-se os indígenas e entrávamos todos novamente no
carro para a última etapa da viagem.
Recordo vivamente que a minha irmã mais velha fez a “festa”
do seu 18º aniversário a bordo do batelão, quer dizer, durante a travessia:
colocámos o bolo no capot do carro, todos os passageiros cantaram os ‘Parabéns
a Você’, ela apagou as velas e distribuiu fatias de bolo a todos.
A chegada à cidade era uma autêntica festa! O ponto alto
número 1 da nossa vida na cidade era a primeira paragem obrigatória: no
‘Emporium’ ou no ‘Monumental’ para tomar o pequeno-almoço – torradas e café com
leite, servidos à mesa por empregados fardados, com luvas brancas e com todos
os requintes da época colonial. Aquilo,
para mim, que vivia no mato com todas as comodidades mas sem qualquer requinte,
era o máximo dos máximos: deslumbrava-me aquele ambiente, mesas com poltronas
junto a grandes janelas, chão alcatifado, música ambiente!!! Eu tinha sempre
vontade de ficar ali, mas o meu Pai ia à cidade tratar de assuntos de trabalho
e não para eu apreciar o panorama…
Nos dias mais quentes íamos comer um gelado – lá chamava-se “sorvete”.
O “sorvete” só se encontrava à venda na cidade, o que o tornava mais uma memorável
cerimónia anual.
Depois, as meninas ficavam com a Mãe na praia, e o Pai ia
aos seus negócios. O almoço era tomado em conjunto no ‘Oceana’ – um restaurante
junto à praia, com uma bela esplanada e, no interior, uma escadaria que subia
em curva, ao 1º andar, onde serviam banquetes. Nunca nos foi permitido subir a escada e toda
a vida fiquei com a sensação de “lugar proibido” e uma vontade louca de
descobrir o que havia lá em cima e saber porque é que os “homens engravatados”
e “senhoras bem vestidas” podiam subir aquela escada e eu não! Esse dia
chegaria, mas bastantes anos depois. Fiz lá o “Copo-de-Água” do meu casamento,
ora pois!!
Uma imagem do Oceana (imagem actual)
O “Oceana” era outro local muito especial para mim. Era o
lugar mais bonito que havia junto à praia. Comíamos o “Bife à Oceana” – que quase não
cabia no prato de barro, enfeitado com fiambre, batatas fritas, azeitonas, eu
sei lá! Um regalo para os olhos e para a barriga! Além disso, o restaurante era
frequentado por um homem muito alto, tinha que se baixar para passar as portas
e o tecto ficava escassos centímetros acima da sua cabeça. Foi por nós
alcunhado de “o Gigante” e durante anos, sempre que íamos à cidade, à hora do
almoço tínhamos que ir ao “Oceana” ver “o Gigante” e de facto, se não
estava, aparecia passado pouco tempo, com grande alegria e algazarra da minha
parte, sempre repreendida pelos meus pais pois não “ficava bem” aquela
demonstração pública!
Uma vez apareceram umas pessoas conhecidas que se sentaram à
mesa connosco para almoçar. Mais uma cadeira aqui, outra ali, chega para lá,
chega para cá, eu acabei por ficar no canto da mesa e desatei num grande
pranto… “Então?? Porque é que estás a chorar? O que te aconteceu??” –
perguntavam todos. E eu, entre soluços: “Eu não quero ficar no canto da mesa…
buáááá…. senão não me caso…. buááááá”´. Foi uma gargalhada geral, mas
mudaram-me para outro lugar na mesa!!
Às 4 ou 5 da tarde iniciava-se o regresso a casa, bastante
mais calmo e muito menos divertido. Para
nos entreter, o meu Pai fazia jogos de contagem de carros com que nos
cruzávamos: a primeira que visse um carro, ao longe, tinha gritar “UM!” e somar
aos que já tinha visto. Quem tivesse mais “Uns” ganhava!... Era uma guerra de
contagens, o meu Pai sempre a ‘arbitrar’ o conflito entre mim e a minha irmã. Outro
passatempo era assinalar a passagem por alguns pontos de referência: o aqueduto
onde uma vez se parou por necessidades fisiológicas, passou a ser referido com
um coro de “ai que pivete!”; a fábrica de papel, mais que falida, era a
“fábrica da Mãe” porque muitos anos antes os proprietários tinham vendido umas
acções numa tentativa desesperada de recuperação, e o meu Pai, sempre crédulo,
acreditou na “recuperação” e comprou algumas acções em nome da minha Mãe…
Depois havia o “Benedetti” – um velho amigo de meus pais, que
com o desgosto de ter perdido a mulher se refugiou no mato, num local acessível
por um pequeno desvio da estrada principal. Vivia no que restava de uma casa
construída sobre pilares de cerca de 1metro de altura, de que só restavam os
degraus da entrada, em cimento, e a fachada em madeira. Entrando, deparávamos
com uma sala ampla, vazia, com apenas meia dúzia de tábuas no soalho; não tinha
tecto nem parede de fundo. À esquerda um “caminho” de tábuas carcomidas marcavam
a passagem para um quarto minúsculo com uma cama de tábuas coberta por uma
manta cinzenta às riscas coloridas mas desbotadas, uma bacia de esmalte de cor
incerta, um balde com água e uns jornais. Atravessava-se a “sala”, pé aqui, pé ali, nas
poucas tábuas restantes, para descer para o quintal por uma escada semelhante à
da entrada. Aí sim – um grande quintal, com frondosas árvores, uma mesa e
algumas cadeiras – era a “sala de jantar”. Ficávamos o tempo necessário para os
cumprimentos e para beber uma limonada fresca tirada de um frigorífico meio
podre que estava ali mesmo, debaixo da árvore, junto à mesa, e voltávamos ao
caminho.
A chegada a casa, já de noite e meio adormecidas, não tinha
nada que contar para além do cansaço, estender na cama e, quando apanhávamos
escaldão na praia, lambuzávamos as costas com creme ‘Ponds’ ou com álcool e pó
de talco……..
Quando, por qualquer motivo, o meu Pai ia à cidade sem nos
levar, esperávamos ansiosas o seu regresso porque… nos trazia sempre uma
sombrinha de chocolate da “Regina”! Na nossa egoísta inocência, nem queríamos
saber se ele vinha bem ou mal, queríamos era a sombrinha de chocolate! Às vezes
ele fingia ter-se esquecido e nós amuávamos logo, para depois fazermos uma
grande algazarra quando descobríamos a brincadeira! Dávamos pulos de alegria,
agarradas àquelas pequenas sombrinhas (custavam 5$00 cada!!!!!), como se fosse
o maior tesouro do mundo…. Vamos lá nós agora dar uma sombrinha de
chocolate aos nossos filhos e eles ficam a rir… “só pode ser piada!” dirão
eles.
Sombrinha de Chocolate
O meu Pai trabalhava numa Serração, e foi aí que cresci, no
meio de troncos, tábuas, camiões, tractores, serradura, etc.
A Serração era uma
área bastante grande, com ruas interiores ladeadas por árvores abacateiros e
algumas mangueiras. Tínhamos sempre abacates e mangas com muita fartura: era só
subir a uma árvore e colher… tão simples como isso.
O Abacateiro
O Abacate
A Mangueira
Havia de tudo lá dentro, para além da serração: um posto de
gasolina, uma oficina mecânica, uma carpintaria, um armazém de peças, garagens,
depósito de serradura, as casas dos funcionários, com as respectivas capoeiras,
pequenas hortas e jardins. Até um pombal havia.
Serração e troncos chegados do mato
O Posto de Gasolina ainda existe (imagem parcial, actual)
O armazém de peças era ‘guardado’ por um senhor muito gordo,
o Sr. Ferreira da Silva. Devia beber muita cerveja porque na parede lateral da
sua casa, junto à oficina mecânica e ao armazém, crescia como uma trepadeira,
uma quantidade infindável de garrafas de cerveja ‘Manica’, de litro.
Nós tínhamos muito medo do Sr. Ferreira da Silva! Porque ele
era gordo, muito mal encarado, sempre sisudo, e parecia não gostar de crianças,
embora nunca nos tivesse tratado mal… nós é que nem nos chegávamos perto!
Sabe-se lá que desgostos o atormentariam…
Um dia o Sr. Ferreira da Silva adoeceu. Deixámos de o ver… dizem
que morreu, nunca soube ao certo.
Foi substituído, no armazém, pelo Sr. Manuel. Rapaz bastante
novo, magrinho, bem disposto, deixava-nos brincar dentro do armazém! Finalmente
pudemos lá entrar e satisfazer a nossa curiosidade: longos corredores ladeados por altas
prateleiras cheias de parafusos, porcas, pregos, enfim, toda a espécie de peças
e ferramentas. Ao fundo empilhavam-se pneus, de carros, de camiões, de
tractores… nós brincávamos às escondidas metendo-nos dentro das pilhas de pneus
e saíamos de lá…. pretos como os pneus! Claro que depois em casa, tínhamos que
ouvir das boas. Eu sempre disse que sou muito branquinha porque a minha Mãe me
lavava com lixívia em África, ahahah, se calhar até é verdade!
Ao lado do armazém, ao longo da parede exterior, havia
muitas violetas, muitas mesmo! Lembro-me que fazia pequenos ramos, com as
folhas à volta e as flores ao centro. Depois ia saltitando e cantarolava a
“Violetera” …”buena sera señoritoooo, compra-me este ramitoooo….” recriando na
minha imaginação as cenas de um filme que tinha visto…
Em frente à casa onde eu vivia havia um grande descampado
que terminava numa zona que tinha um monte com uns 5 ou 6 metros de altura, de
“strips” – mais não eram que os actuais ‘tacos’ com que se cobrem os
pavimentos, mas em bruto. Brincávamos sempre trepando aqueles montes instáveis,
como se fosse uma pista… nem sei como nos equilibrávamos, mas crianças são
mesmo assim…
Uma vez resolvemos fazer um ‘hotel’ – começámos a
transportar os tacos (muitos, muitos, durante vários dias) para um local mais
afastado e, taco sobre taco, devidamente equilibrados, construímos uma espécie
de recinto, com divisórias, a que chamámos ‘hotel’ e, encantados da vida,
brincávamos alugando os ‘quartos’ uns aos outros. Levámos para lá almofadas e
as nossas bonecas (eram a nossa família, cada uma no seu ‘quarto’).
Um dia, ao pequeno-almoço (lá chamávamos-lhe sempre o
‘mata-bicho’), ouço o meu Pai muito preocupado dizer à minha Mãe que se calhar
tinham que chamar a polícia, porque “nhã-nhã-nhã… blá-blá-blá” …não prestei
muita atenção, até ouvir a palavra “roubar”. Por pura curiosidade, perguntei de
que se tratava e ele disse que andava desaparecer madeira… “Ah sim? Que
madeira?...” – perguntei por perguntar pois aquilo não me interessava nada, mas
já que tinha começado a conversa, tinha que mostrar os meus dotes intelectuais
e manter a conversa até ao fim. – “Strips” disse ele. “Ããã?? Ah…. Tem graça… por
acaso nós também fizemos um hotel com ‘strips’….” (strips são tacos, daqueles para fazer os pavimentos)
“Hotel???? QUE HOTEL???? Mostra lá” – Ele já estava a ficar
com cara de poucos amigos… Lá lhe contei do nosso hotel e… acabou ali o
“mata-bicho” ……
Ao ver o ‘Hotel’, bronca das broncas! “TOCA A LEVAR JÁ TUDO DE VOLTA!!!!” … Embora
estivesse muito zangado pois já ia meter a Polícia, deve ter entendido que as
crianças entretinham-se com coisas assim… Ralhou bastante, barafustou, resmungou
muito, muito, mas a coisa ficou por ali. Nunca mais se falou no assunto, não
houve Polícia, não houve castigos, nada! Santo Paizinho!
Como não havia televisão, nem jogos de computador, nem
Play-stations… tínhamos que nos entreter com outras actividades. Brincar aos
Índios e Cow-boys por exemplo – eu gostava muito mas o pior era que, como era
das mais pequenas, tinha que ser sempre Índio, e os Índios perdiam sempre, por
mais esperta que eu fosse e os conseguisse apanhar, eles, os Cow-boys
arranjavam sempre desculpas – eles com tiros acertavam sempre, nós com flechas,
falhávamos sempre ou então o ferimento não era mortal! Malvados, nunca me
deixavam ganhar uma batalha!!
Um dia resolvi esconder-me na folhagem de um abacateiro.
Subi, agachei-me e aguardei que um “cara-pálido” passasse por baixo para o
“atingir mortalmente” com uma boa flechada!! Tive azar! O ramo da árvore não
suportou o peso do “índio valente” e este estatelou-se no chão com um pulso
deslocado. “Índio valente” corre a chorar para casa da mãe, que lhe ligou o
pulso com uma ligadura e clara de ovo batida (à falta de gesso) que, quando
secou ficou dura e com o aspecto de um braço engessado que orgulhosamente
ostentei durante dias, como um troféu. Até que, pouco tempo depois, farta
daquilo, deitei tudo fora e fui brincar novamente. O pulso ficou ‘mal curado’ e
ainda hoje sofro as consequências…..
Outra vez resolvemos convidar todas as amigas e amigos e
fazer um “Baptizados das Bonecas”: umas 20 ou 30 bonecas (de todas as meninas
das redondezas) todas enfeitadas com vestidos brancos (feitos pelas mães,
claro), levavam com um balão na cabeça enquanto se diziam as palavras da praxe:
“Eu te baptizo, Fulana/o” (dizia-se o
nome da boneca) ….blá-blá-blá…” – depois,
um grande lanche (feito pela minha mãe), muitos balões (enchidos pela minha mãe
e pela minha irmã mais velha), música (acho que gira-discos, daqueles de
manivela – quem dava à manivela era a minha mãe e minha irmã mais velha)…..
enfim, uma festa para nós crianças e uma estafa para a minha mãe e minha irmã!!
Baptizado das Bonecas
E assim decorria a vida, praticamente no meio do mato, onde
não havia televisão, e cinema só de vez em quando… ao princípio era ambulante:
chegava uma carrinha com os cartazes dos filmes que iriam ser apresentados, o
‘homem do cinema’ fazia tocar uma sineta a anunciar a sua chegada e as pessoas
corriam para ver as ‘novidades’ e decidir se iriam ou não ver o filme. Se
houvesse ‘quórum’ o filme seria apresentado. Assim, no dia da apresentação, a mesma
carrinha chegava, estendia um enorme lençol (era o ecrã) entre as árvores ou no
ringue de patinagem, cada pessoa levava a sua cadeira e … projectava-se o
filme. Uma noite estava muito vento, o lençol soltou-se e ficámos sem ver o fim
do filme! E, claro, nós crianças só podíamos ir ver os filmes para maiores de 6
anos!!! Os filmes para maiores de 12 só podíamos ver DEPOIS de os nossos Pais
os verem e aprovarem, e os para maiores de 21 então, eram totalmente
proibidos!!
Entretanto, chegou o dia que tive
que ir para a Escola…. Um drama. Nunca gostei da escola. Ter que me levantar
mais cedo para me ir fechar dentro de uma sala onde tinha que me portar muito
bem senão puxavam-me as orelhas (eu tenho HORROR a que me TOQUEM nas orelhas,
quanto mais puxar!!). E depois tinha que
aprender a tabuada!! Horrível! E a caligrafia então? Um desastre. Cada vez que
recebia as notas chorava porque em Caligrafia tirava «sempre ‘sufiente’, sempre
‘sufiente’!!!» – reclamava eu à minha Mãe. E depois tinha que aprender a
História, com todas aquelas datas, de batalhas, de reinados, de nascimento e
morte de gente que eu nem sabia quem eram!! E a Geografia então?? Decorar rios
e linhas férreas, montes e montanhas, distritos e sei lá que mais! Sítios que
eu nem imaginava onde ficavam!! Ainda que me ensinassem coisas ali da minha
terra… mas não! Tinha que ser “aquelas coisas todas” da Metrópole! Mas nem tudo
era mau: gostava muito de cantar o Hino Nacional à entrada e saída das aulas,
isso sim, o Hino Nacional e o Hino da Mocidade Portuguesa!! Cantava gritando
bem alto, com muito entusiasmo.
Aos poucos fui ficando fã de alguns dos heróis
da nossa História… Meu grande herói: D. Nuno Álvares Pereira (tanto que o meu
filho se chama Nuno). Dos Espanhóis, não
gostava nem um bocadinho… portanto a
Padeira de Aljubarrota, era a ‘maior’!
D. Afonso Henriques, o ‘mais valente’ que podia haver!… Tudo isto ficou
gravado no meu subconsciente desde aquela idade e … moral da história:
tornei-me uma grande patriota portuguesa! (Sendo meus pais de italianos, fui
criada pelos ‘moldes’ italianos até à idade escolar, a partir daí, ‘virei’
portuguesa …).
Tanto detestava a escola que um
dia pedi ao meu Pai para me arranjar um martelo. Queria deitar a escola abaixo,
para não ter que lá voltar, disse eu… aí o Paizinho querido, pacientemente
explicou-me que se eu deitasse aquela escola abaixo, faziam outra e eu teria
que frequentar a nova escola… Desanimei bastante… senti-me deveras
impotente! Resignei-me então a passar aqueles
dois anos que faltavam até à 4ª classe e depois iria ser cabeleireira, para não
ter que estudar mais.
Mas, mais uma vez, os meus planos
falharam. O Paizinho, sempre paciente, explicou-me que eu iria fartar-me de
lavar cabeças – sim, porque para ser cabeleireira primeiro tinha que andar uns
anos só a lavar cabeças e só depois é que ia aprender a fazer penteados! – o
melhor era eu estudar só mais um pouco e arranjar um emprego num escritório,
que era muito mais divertido, escrever à máquina, furar papeis, agrafar, tudo
tarefas muito mais interessantes do que lavar cabeças! – e lá me convenceu a ir
para o Colégio…. “mas só até ao 2º Ano!!!” frisei bem! Quando estava para
terminar o 2º ano, lá veio o Paizinho mais uma vez, tentar fazer-me entender
que se eu soubesse falar Inglês, ainda ia ser mais interessante o trabalho! “Já
viste, poderás falar com os ingleses que vêm de férias, contar coisas,
perguntar outras, saber coisas de outros países” – e, mais uma vez me convenceu
a ir até ao 5º Ano. Depois disso, ainda me conseguiu convencer a ir para o País
vizinho tirar um curso de Línguas e Secretariado – “Mas tem que ser um curso
que acabe depressa!!! Não vou andar mais tempo a estudar, estou farta disto!!”
E assim, durante um ano, sem férias nem feriados, tirei um curso comercial
intensivo de secretariado e línguas, com várias disciplinas e algumas aulas
extra de “Defesa Pessoal”, “Maquilhagem”, “Comportamento Social”, “Como
Discursar em Público”, “Como Andar, Sentar e Levantar”(não estou a brincar, foi
mesmo 1h30 a andar de um lado para o outro, sentar, levantar, corrigindo
posturas, etc), “Decoração”, “Exercício Físico”… enfim, fiquei com a “escola
TODA!”… que bem serviu quando comecei a trabalhar! Obrigada Paizinho!
Depois disto, acho que o Paizinho
ficou sem argumentos… fiquei mesmo por ali.
O que eu não sabia era que depois, quando finalmente deixei de estudar e
fui trabalhar, ia ter outro pesadelo e muito mais duradouro do que estudar:
levantar cedo TODOS os dias do resto da minha vida! Aí, decidi trabalhar para
outro objectivo, outro sonho: nunca mais ter que me levantar cedo, não ter
horários e só fazer o que me apetecesse. E que ‘alguém’ me mandasse o ordenado
para casa! Entretanto, enquanto esse dia
não chegasse, tinha mesmo que trabalhar SEMPRE! Adeus Férias do Carnaval,
Férias da Páscoa, Férias Grandes, Férias do Natal………… (sniff)
Da minha passagem pelo colégio de
freiras recordo alguns episódios: não gostava do pão do pequeno-almoço – pão
seco, com manteiga rançosa, um horror! – por isso escondia-o no bolso da bata e
à noite punha-o no saco dos sapatos… no domingo quando fosse a visita dos Pais,
leva-o embrulhado no casaco, debaixo do braço, para a minha Mãe o deitar fora.
Ouvia sempre uns ‘ralhetes’, mas Mãe é Mãe e ela lá devia entender-me!
E lembro-me de uma noite ter
passado muito mal porque comi 13 croquetes ao jantar. A dose era de 4 croquetes
por pessoa, e éramos obrigadas a comer, mas as outras 3 meninas da minha mesa
detestavam croquetes e eu até gostava, portanto ficou decidido que eu comeria 3
croquetes de cada uma delas + os meus.
E assim foi… depois passei a noite a
vomitar. Disse à freira que foram os croquetes mas nunca disse quantos tinha
comido, claro!
Depois havia o canto-coral. Obrigatório! Sempre que podia, entrava no
salão dos ensaios e quando passávamos à porta de acesso ao palco, em vez de
subir para o palco eu descia para os bastidores, na cave, e fugia por uma porta
dos fundos. Não sei como, nunca fui apanhada.
Numa aula de Ciências Naturais,
4º ano: a colega de trás passa-me um bilhetinho que dizia: “Sei de um rapaz
que gosta de ti.” Assinado: Jorge.
Nunca liguei a rapazes; tinha na minha mente
que só iria ‘entrar’ nesse capítulo lá para os 17 ou 18 anos. Achava que os
namoricos dos 12 anos eram perda tempo. Mais importante era andar de bicicleta,
aprender a conduzir, passar tempo com os
amigos, ouvir música, enfim, tudo menos namorar! Portanto, aquele bilhetinho
apenas suscitou a minha curiosidade. Peguei noutro papelinho, escrevi “Quem é?”
– enrolei-o em forma de bola e remeti-o para trás (os rapazes ficavam no fundo
da aula, naquele 4º ano), rolando pelo chão, até ao Jorge.
Passados uns
minutos, chegou outro papelinho que dizia: “Não posso dizer”, e respondi, pelo
mesmo ‘correio’ : “Se não podes dizer, porque é que disseste?” Resposta: “Só
posso dizer que é desta turma.” – Enfim, papelinho rolando para cá, papelinho rolando
para lá, perguntas curiosas, respostas evasivas, assim se passou a aula toda
até que a minha curiosidade atingiu o limite e eu dei o ‘basta!’ : “Ou dizes
quem é, ou acaba-se já a conversa!” – e ele respondeu: “Chama-se Jorge…”
Ia-me caindo tudo o que tinha e o que não tinha também! Então aquele ‘palerma’
fez-me perder uma aula inteira aguçando a minha curiosidade e a minha auto-estima,
imaginando sei lá o quê, para depois concluir com ‘aquilo’??????? Enfim… olhei
para ele com cara de comiseração, encolhi os ombros, e o ‘namoro’ acabou ali.
Com receio que alguma freira encontrasse os papelinhos, apressei-me a metê-los
todos no bolso da bata (aquele bolso era mágico, levava tudo!!). Quando cheguei
a casa, despejei todos aqueles papelinhos amarrotados para cima da cama, para
os deitar fora.
A minha irmã viu aquilo (eram aí uns 20 ou 30) e perguntou: “O
que é isso???” E eu respondi, laconicamente, com um suspiro resignado: “É uma
declaração de amor….”
Obrigou-me a guardar tudo porque “são coisas que não se
deitam fora!” e eu guardei uns tempos e depois deitei mesmo fora. Para que é
que eu queria aquilo?? O coitado do Jorge ainda rondou por uns tempos, falando
sempre de si como se de outra pessoa se tratasse “tenho um amigo que…”, “o que
acharias se alguém….” E já não me lembro de mais nada. Nem o apelido dele eu
lembro…
Depois havia ainda os bailes! Grandiosos bailes de Fim-de-Ano e de Carnaval
– grandiosos enquanto fui pequena; quando cresci um pouco, passaram a ser
Bailes normais, embora gostasse muito de os frequentar. Em pequena, os meus Pais iam aos bailes de
vez em quando.
Os bailes decorriam no Clube Ferroviário. O Clube era um
espaço com Campo de Futebol, ringue de patinagem, campo de ténis e, no
interior, várias salas, umas destinadas a jogos – bilhar, cartas, matraquilhos
(?) – bar, salão de festas, grande, espaçoso, talvez do tamanho de ¼ de campo
de futebol, com as mesas todas à volta, e um palco onde actuavam os músicos.
O que resta do "glamoroso" Clube Ferroviário :( (imagem actual)
a escadaria de entrada central e
a parte verde-escuro: a zona dos bastidores e das 'toiletes'
Nas traseiras do palco eram os bastidores e mais atrás era a ‘toilette’, assim
se chamava. A ‘toilette’ das senhoras era outro espaço que me fazia sonhar com
contos de damas e princesas. Era uma sala grande, talvez com uns 60m2, ao
centro uma pequena mesa, à direita e à esquerda uns sofás confortáveis onde nos
sentávamos para conversar um pouco enquanto esperávamos vez de ir ao wc; ao
fundo um espelho grande onde as damas e donzelas se miravam, de frente, de costas, de lado... e retocavam a maquilhagem. Ao lado, uma porta dava passagem à zona de wc’s.
Os bailes de Fim-de-Ano e de Carnaval destacam-se na minha
memória por vários factos: primeiro tinha que se reservar mesa com bastante
antecedência, começando portanto a emoção de ‘ir ao baile’ muito antes do mesmo
acontecer; a decoração do salão, sempre com elementos muito brilhantes (nas
passagens de ano), grinaldas, serpentinas, mascarilhas (no carnaval) etc.
Nas
passagens de ano, cada família levava os ‘comes e bebes’ que se colocavam sobre
as mesas e eram partilhados com todos os que ‘visitavam’ a nossa mesa e nós
sempre tínhamos que provar os ‘petiscos’ das pessoas cujas mesas eram
‘visitadas’ por nós. Finalmente, lembro-me que, para mim, a festa acabava
sempre comigo a dormir no banco de trás do carro, frequentemente controlada
pelos meus Pais.
Depois havia muitos outros pretextos para organizar bailes:
o Baile do Estudante, o Baile das Chitas, sei lá, qualquer assunto era
aproveitado para fazer um baile. O Baile das Chitas, anual, em que as senhoras
e senhoritas se apresentavam a concurso com vestidos feitos exclusivamente com
tecidos de chita, era outro dos pontos mais altos da época! Cheguei a concorrer
algumas vezes e até ganhei uns prémios: uma ventoinha, um ferro de engomar,
dois cobertores, dois Pyrex’s enormes (ainda os tenho!)… outras mais elegantes
e com vestidos mais vistosos, ganhavam mobílias de varanda, relógios de parede,
serviços de jantar, enfim, não era brincadeira, os patrocinadores eram bastante
generosos…
Finalmente recordo com enorme saudade, as trovoadas! Eu
adorava as trovoadas em África! Levantava-me da cama para ir ver relampejar e
trovejar, e para ver a chuva cair a cântaros e imediatamente desaparecer
infiltrada na terra seca! E ficava um cheiro de terra molhada, um ar fresco e
penetrante! Passados alguns minutos começavam os sapos a coaxar, os grilos a
cantar e os sons da noite invadiam o ambiente silencioso. Que saudades desses
sons e desses cheiros! Só em África!
E durante o dia, outros sons e outros cheiros penetrantes,
inolvidáveis mas também nunca mais sentidos: o cheiro das queimadas, com as
fagulhas a esvoaçar e a encher tudo de partículas pretas… o cheiro do sol
quente, ardente, sufocante… o cheiro do mato seco… o cheiro das capoeiras… até
o cheiro da catinga!
O pôr do sol vermelho, cegante!
Pôr do sol em Moçambique
E os sons, os sons
dos cânticos dos indígenas nos seus trabalhos, as cantilenas nas horas de
descanso, repetitivas, ao compasso de instrumentos improvisados como uma lata
com uma chapinha que faziam vibrar “tõinh-tõinh-tõinh”, batuques, cordas,
caricas, etc… um martelar longínquo, propagado pelo silêncio do mato e pelo
calor… enfim, recordações… apenas recordações, mas eternamente gravadas na
minha alma africana….
Não há imagem que consiga mostrar este sentimento ....
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